quarta-feira, 28 de julho de 2021

    Uma das regras mais básicas e que qualquer escritor de YA conhece é que não há assuntos tabu, ou temáticas proibidas. Os livros fazem-nos pensar, mostram-nos mundos que nos fazem pensar o mundo, oferecem-nos a capacidade de analisar criticamente e são fonte inesgotável de conhecimento, não devem, de todo, ser  locais assépticos e ideologicamente higiénicos mesmo que estejamos a falar de YA.
    Tradicionalmente, pensamos que a literatura YA não deve abordar certos temas mas, na verdade, depois gostamos quando as discussões e as chamadas de atenção estão lá porque, não raro, os livros são as únicas fontes de informação que temos, a única forma de nos identificarmos e termos algumas referências em determinadas áreas. Quantos jovens não têm ninguém com quem desabafar os seus medos e problemas senão com os livros?  É por isso que em YA não há temas proibidos. Por muito mau que seja aquilo que queres abordar, 80% dos teus leitores já tiveram contacto com a problemática na vida real e muitos deles vivem na pele muito, mas muito, piores experiências do que as que possas descrever. A única coisa a ter em conta é o modo como se abordam essas temáticas pois, embora todas elas sejam válidas, a forma como as expomos deve adequar-se à idade dos nossos protagonistas e, sobretudo, dos nossos leitores.
    E isto vem a propósito de quê? Na verdade, podia vir por vários motivos, desde o banir de clássicos um pouco por todo o mundo (um dia destes discutimos isso com mais calma) até o facto de actualmente um autor já não poder escrever o que quer, sem maldade ou intenções menos boas sem ser acusado (muitas vezes de forma descabida) de ser um ser humano menos bom e menos correcto que escreve apenas para magoar os outros. Mas… não é nada disso. A reflexão vem a propósito de um YA que li há uns tempos numa leitura conjunta e que me deixou desiludida, frustrada e chocada.

    Devo dizer que o grupo de leitura era constituído maioritariamente por raparigas, todas bem mais novas que eu, algumas com apenas 15 ou 16 anos, e que todas adoraram o livro a ponto de partirem, logo de seguida, para a leitura do 2º volume da trilogia. Este facto também me chocou bastante e deixou-me a pensar, mas já lá vamos…

    Ora, o livro em causa tem, para os que se preocupam com isso, uma cotação 3.96 no Goodreads e os que se lhe seguem têm notas mais altas, todos têm recebido críticas bastante positivas dos leitores. A coisa começa com uma personagem principal que é para lá de pão sem sal, totalmente dependente dos outros, facilmente manipulável  e incapaz de pensar ou tomar decisões por si mesma. Logo aqui começa mal mas pensei que ia haver algum tipo de evolução, acontece que não. Aliás, mal nos apercebemos que a miúda não tem vontade própria, aparece um pai autoritário e abusador que quando uma filha faz algo que lhe desagrada castiga, com requintes de malvadez, a irmã e não a própria. What?!? Não tenho nenhum problema em ler sobre castigo físico sempre que não seja gratuito e que essa descrição violenta leve a algum lado a nível de reflexão, que nos ensine algo ou que, de algum modo, enriqueça a história. Nada disso aconteceu aqui, era exercício de autoridade e violência sem qualquer justificação que se visse ao longo de toda a narrativa e que culmina num triste episódio de perseguição do pai à sua filha e subsequente entrega da miúda para ser violada. Sim, leram bem, sem mais nem menos o pai persegue a filha e acaba por a entregar, de modo perfeitamente consciente, a um crápula seu amigo para que este a viole. E foi aqui que a minha paciência acabou e eu estourei para depois ficar chocada por ter sido a única a não achar aquilo tudo escabroso. Mais a mais, todos estes episódios são totalmente injustificados e o livro passava lindamente sem eles (não ia ficar muito melhor mas....).  E sim, a miúda lá se safa graças a uma poção mágica mas isso não justifica nem perdoa porque, pelo menos para mim (e pelos vistos só para mim), não é normal nem legitimo um pai oferecer a filha para ser violada e, na vida real, infelizmente, não há poções mágicas que nos salvem numa situação daquelas. 

    Sinceramente, não percebi de todo o que raios quis a autora transmitir com aqueles episódios e  tampouco o que era suposto uma jovem adolescente aprender com os mesmos e é ai que reside o problema. Da literatura, de TODA a literatura, devemos conseguir retirar algum tipo de ensinamentos. A literatura YA tem um papel extremamente importante nesse campo pois é, por natureza, direccionada para um público que está a formar a  sua personalidade, a cimentar as suas convicções e crenças e o facto de não haver temas tabu não isenta o autor de certas responsabilidades.

Fiquei chocada e triste com a maneira como as temáticas foram ali despejadas mas mais ainda por não ter havido muito quem contestasse, quem achasse que, mesmo a nível literário e como mero exercício intelectual, nada daquilo fazia sentido e era minimamente normal. Antes pelo contrário, foi aceite ou, em alguns casos, passou ao lado, despercebido e disfarçado no meio de um romance de cordel de 5ª categoria. Foi isso que mais me magoou e mais me fez pensar, se não nos indignamos quando vemos violência e violação gratuitas na literatura,  como se espera que haja empatia para nos insurgirmos contra este tipo de situações na vida real? Alguma daquelas raparigas que leu comigo ficou tão chocada como eu e teve vergonha de dizer? Ou acham normal ter pais autoritários e abusadores? As jovens de hoje, contrariamente ao que eu pensava, acham legítimo submeter-se à vontade de outrém sem estrebuchar?


    Enfim, não sei bem onde queria chegar com isto, foi um desabafo sobre um tema que me anda a incomodar. Bem sei que cada um lê o que quer, que os livros educam mas que em casa há trabalho que tem que ser feito por quem tem essa responsabilidade, que todos temos problemas a sério e que devemos saber relativizar, que na literatura há espaço para tudo (até para o mais escabroso) mas… Os livros não são “só livros” e não contam “só histórias” e mais do que ser incompreensível que um autor YA trate temas delicados como se nada fosse, dói-me que os jovens leiam e não questionem, não se insurjam. A literatura sempre foi incómoda por tornar insubmissos os que lêem, por nos fazer questionar e contestar mas este caso mostrou-me que ou os valores estão a mudar, ou há muito quem leia sem ler.


Podem deixar a vossa opinião na caixa de comentários, por favor, porque gostava realmente de saber a vossa opinião sobre o tema e de discutir isto com alguém e... desculpem qualquer coisinha (sobretudo se a exposição da coisa foi um bocado atabalhoada ou confusa).


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